Do caminho à alma da cidade – as histórias do taxista poeta de Paraty

Nem todo poeta escreve em cadernos de couro ou declama em saraus. Em Paraty, há um que compõe seus versos ao volante, entre ladeiras de pedra e o vai e vem de turistas encantados. Seu nome é conhecido por poucos, mas sua poesia já rodou boa parte da cidade. Ele é o taxista-poeta, um contador de histórias que transforma cada corrida em prosa rimada, cada parada em inspiração.

Nas janelas do carro, ele vê mais do que paisagens coloniais: enxerga as camadas humanas da cidade, os silêncios, os reencontros, os sorrisos que passam apressados. Para ele, Paraty não é só um destino — é um poema vivo, escrito com passos, cheiros de café, cheiro de mar e memórias que se cruzam como ruas estreitas.

A partir de agora, você vai descobrir que, às vezes, é no banco da frente de um taxi é que se revelam as maiores poesias — aquelas que falam da vida, das pessoas e do amor por um lugar chamado Paraty.

Paraty: cenário de poesia viva

Paraty é mais que um cartão-postal. É uma cidade que respira história em cada pedra de suas ruas, em cada casarão colonial de janelas coloridas, em cada traço do tempo que insiste em permanecer. À beira do mar e cercada pela mata atlântica, ela acolhe viajantes do mundo todo com a mesma beleza com que inspira quem nela vive.

Reconhecida por sua importância histórica e patrimonial, Paraty também é celeiro de cultura. Sede de eventos literários como a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), a cidade já recebeu escritores consagrados, mas mantém, em suas esquinas e mercados, uma tradição oral vibrante, passada de geração em geração — em conversas de botequim, rodas de samba, contos pescados no cais e prosas entoadas ao entardecer.

É nesse ambiente onde passado e presente se entrelaçam que vive o taxista-poeta. Ao percorrer as ruas de Paraty, ele não apenas transporta passageiros — transporta histórias, fragmentos de vidas, cenas que observam em silêncio e depois viram poesia. O cenário é sua fonte inesgotável de inspiração: o reflexo das lanternas nos paralelepípedos molhados, o som da igreja tocando ao longe, o sotaque de quem chega e a saudade de quem parte.

Paraty oferece a ele não só paisagens, mas sentimentos. E é dessa matéria-prima — viva, cotidiana, sensível — que surgem os versos que ele compartilha entre uma corrida e outra. Porque aqui, na cidade onde a arte vive nas ruas, a poesia não precisa de palco: ela floresce no trânsito, no tempo e na escuta de quem sabe olhar.

O taxista e o poeta: duas rotas, um só coração

Nem sempre a poesia entra na vida pelas portas que esperamos. No caso de Seu Antônio — como é conhecido o taxista-poeta de Paraty — ela veio de mansinho, entre uma viagem e outra, nas pausas silenciosas entre corridas, nas madrugadas em que o cansaço dá lugar à reflexão. Filho de pescador e neto de lavradores, cresceu ouvindo histórias contadas à beira do fogão, cercado por palavras que não estavam nos livros, mas nos olhos dos mais velhos.

Aos 18 anos, começou a trabalhar como motorista. Com o tempo, descobriu que o táxi era mais do que um meio de sustento — era um palco, uma escola, um confessionário. Passageiros contavam suas dores, alegrias e memórias, e ele, atento, ouvia tudo. Aos poucos, as palavras começaram a se transformar em versos. Primeiro em pensamento, depois rabiscadas em blocos de anotações, guardanapos, até tomarem forma de pequenos poemas sobre a vida cotidiana, a beleza simples das ruas e o mosaico humano que desfilava em seu banco de trás.

A paixão pela poesia nasceu ali, no asfalto. E foi crescendo, ganhando ritmo e coragem. Hoje, Seu Antônio escreve inspirado por tudo: pelo brilho das pedras molhadas após a chuva, pelo riso de uma criança, pelo silêncio de um idoso solitário. Seus versos não seguem regras fixas, mas seguem o coração — e cada um deles carrega um pouco da alma de Paraty.

Essa fusão entre o trabalho e a arte fez dele uma figura única na cidade. Com o volante em uma mão e um caderno na outra, ele mostra que poesia não mora apenas nos livros, mas também no trânsito, na rotina, na escuta. Seu táxi é, ao mesmo tempo, transporte e inspiração — e Seu Antônio, com simplicidade e sensibilidade, é guia de dois caminhos: o físico e o poético. Porque em cada trajeto que percorre, deixa um rastro de humanidade e verso.

Histórias do banco de trás

No táxi de Seu Antônio, cada passageiro é um universo. Ao longo dos anos, ele aprendeu que dirigir é mais do que levar alguém de um ponto a outro: é estar presente, ouvir com atenção e deixar que a estrada revele, pouco a pouco, as histórias que cada um carrega consigo. Muitos entram calados, mas poucos saem sem antes partilhar algo – uma memória, uma dor, uma risada.

Entre os muitos encontros que coleciona, há alguns que viraram poesia. Como o de dona Zuleide, uma senhora de 82 anos que pediu uma corrida só para dar uma volta na cidade, matar a saudade da juventude e ver o mar pela última vez. Durante o percurso, falou do amor que teve, das cartas trocadas e de como Paraty mudou — mas ainda guardava os cheiros da infância. Seu Antônio escutou tudo em silêncio e, naquela mesma noite, escreveu um poema chamado “Carta para quem não voltou”, inspirado por ela.

Teve também o casal estrangeiro que brigava em inglês, sem imaginar que o motorista entendia cada palavra. No fim da corrida, ele apenas sorriu e disse, com delicadeza: “O amor é como estrada de paralelepípedo — bonita, mas cheia de trancos”. Riram, agradeceram, e dias depois ele transformou aquele episódio em um poema bem-humorado sobre o amor em tempos de GPS.

Certa vez, uma criança subiu no carro com os olhos brilhando de curiosidade e perguntou se ele era “um motorista ou um escritor”. Ele respondeu: “Sou os dois, mas o que mais gosto é de ouvir”. Porque Seu Antônio entende que a escuta é parte fundamental de seu ofício — e da sua arte. Cada conversa, por mais breve que seja, alimenta sua escrita com humanidade e verdade.

Esses causos não são apenas curiosidades: são o combustível de sua poesia. No banco de trás, acontecem confissões inesperadas, reencontros emocionantes, silêncios carregados de sentido. E é nesse espaço íntimo e passageiro que ele encontra inspiração para eternizar o que, de outro modo, seria esquecido. Para ele, não há corrida comum — há sempre uma história esperando para virar verso.

A poesia como ponte entre mundos

Nos trajetos silenciosos entre um ponto turístico e outro, entre o cais e o morro, entre a pressa do visitante e a calmaria do morador antigo, os poemas de Seu Antônio cumprem um papel poderoso: eles criam pontes. Pontes invisíveis, mas firmes, que aproximam pessoas de realidades distintas, unidas por sentimentos comuns e histórias compartilhadas.

Muitos passageiros se surpreendem ao ouvir versos declamados pelo próprio motorista, seja durante a corrida ou escritos em pequenos papéis deixados no banco de trás. Uns se emocionam, outros sorriem, alguns se calam — mas todos, de alguma forma, se reconhecem nas palavras que falam de amor, saudade, infância, perda, recomeço. A poesia, ali, não é um adorno. É uma forma de fazer com que Paraty se revele não apenas como cenário, mas como personagem viva — com voz, cheiro, ritmo e alma.

Seu Antônio gosta de dizer que Paraty fala, e ele apenas escuta e escreve. Seus versos captam o que muitos não percebem: o gesto do pescador ao remendar a rede, o barulho das rodas nas pedras, o cheiro de café vindo do mercado cedo. Ele traduz em poesia o que faz dessa cidade um lugar de pertencimento, mesmo para quem chega pela primeira vez.

A cada poema, ele reafirma o que significa ser paratiense: um guardião da memória, da simplicidade e da beleza que mora no cotidiano. E assim, transforma a rua em um espaço de criação viva. Seu táxi vira palco, seus cadernos viram antologias não publicadas, sua escuta vira forma de resistência cultural.

Nesse trânsito constante entre gente, tempos e afetos, a poesia de Seu Antônio costura memórias, constrói identidade e convida todos — turistas, moradores, curiosos — a ver Paraty não só com os olhos, mas com o coração. Porque, como ele mesmo escreve, “a cidade é feita de encontros, e a poesia é o que fica depois que cada um vai embora”.

Reconhecimento e resistência

Manter a poesia viva no dia a dia não é tarefa fácil — especialmente quando o tempo é curto, as contas são muitas e a arte, muitas vezes, não é vista como trabalho. Para Seu Antônio, o taxista-poeta de Paraty, resistir é escrever mesmo cansado, declamar mesmo sem plateia, guardar seus versos como sementes que um dia, quem sabe, floresçam nos corações certos.

Nem sempre houve incentivo. Durante anos, seus poemas circularam apenas entre os passageiros mais atentos, anotados em folhas soltas ou recitados com timidez. Mas aos poucos, sua arte começou a ganhar espaço. Primeiro, foi uma professora que o convidou para declamar na escola local. Depois, um grupo cultural incluiu seus textos em uma feira de literatura popular. Hoje, alguns comerciantes exibem seus versos nas vitrines, e há quem o procure só para fazer uma corrida poética — onde o destino é menos importante que a conversa no caminho.

Essas iniciativas, embora simples, são sinais de que a comunidade começa a reconhecer o valor de seus artistas populares, daqueles que, como Seu Antônio, não têm palco fixo, mas seguem firmes na missão de preservar e espalhar beleza. Há também projetos de jovens da cidade que gravam vídeos com ele, publicam seus poemas nas redes sociais ou ajudam a organizá-los para um possível livro — que ele sonha lançar, mesmo que só em edição caseira.

Seu Antônio entende que não escreve só por si. Ele escreve por todos que vieram antes e por todos que virão. É, sem dúvida, um guardião da memória local, um cronista da cidade que registra, em forma de poesia, aquilo que os olhos distraídos deixam passar. Ao transformar trajetos comuns em experiências poéticas, ele prova que a arte pode — e deve — estar nas ruas, nos carros, nas mãos de quem vive a cidade de verdade.

Resistir, para ele, é não deixar que a palavra se cale. É continuar escrevendo, mesmo quando ninguém está olhando — porque o simples ato de escrever já é, por si só, um gesto de esperança.

Paraty é mais do que suas belas paisagens, casarões coloniais e festivais conhecidos. Existe uma cidade viva por trás dos cartões-postais — feita de vozes, gestos, histórias e poesia pulsando em cada esquina. É nesse lugar profundo e verdadeiro que moram personagens como Seu Antônio, o taxista-poeta, que nos convidam a enxergar com mais sensibilidade o que há de humano em cada trajeto.

Na sua próxima visita, que tal desacelerar e escutar? Dê atenção ao vendedor da feira, ao pescador do cais, ao motorista que te leva — talvez ele carregue no porta-luvas um mundo inteiro de versos ainda não ditos.

Valorizar os artistas populares é preservar a alma dos lugares. É manter vivas as histórias que não chegam aos livros, mas que transformam quem as ouve.

Já encontrou poesia fora dos livros? Compartilhe nos comentários! Vamos juntos espalhar palavras que nascem do chão, da rua, da vida real.

A arte nem sempre veste gala ou se apresenta em grandes palcos. Muitas vezes, ela mora nos gestos mais simples: no som dos pneus sobre o paralelepípedo, na pausa entre uma corrida e outra, no olhar atento de quem escuta mais do que fala. É nessa arte cotidiana, quase invisível, que se revela a verdadeira essência de um lugar.

O taxista-poeta de Paraty nos mostra que a cidade tem alma — e que ela pode ser tocada, sentida e contada em versos espontâneos, nascidos da convivência com o outro. Seu Antônio transforma o ordinário em extraordinário, lembrando a todos nós que poesia não é só palavra bonita — é presença, escuta, memória viva.

Reconhecer os poetas anônimos que habitam nossas cidades é também um ato de resistência e afeto. É dar valor a quem transforma o cotidiano em cultura, e a quem, como ele, carrega nas mãos o volante — e no peito, um coração cheio de histórias para contar.

Do caminho à alma da cidade – porque nas curvas de Paraty, o taxista-poeta guia palavras com o mesmo cuidado que conduz vidas.

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